quinta-feira, 22 de abril de 2010

(2010/333) Gn 2-3, Nietzsche, Losurdo - e eu


1. "A leitura que Nietzsche faz desse mito (Prometeu) não é diferente (da leitura que Schelling faz dele); ele alerta a tomar nota, sem subterfúgios da 'indissolúvel contradição', da 'contradição no coração do mundo', do 'rochedo' que inevitavelmente pesa sobre toda civilização. No franco e másculo reconhecimento desta inevitabilidade reside a clara superioridade de tal mito em relação ao relato bíblico que, ao colocar a queda na conta do 'embuste mentiroso' da serpente, ou seja, da 'curiosidade', 'seducibilidade' e 'sensualidade' da mulher, se revela propenso a 'remover fraudulentamente' a 'desgraça na essência das coisas' (...). O relato bíblico está todo centrado no tema da queda acidental e redimível. A natura lapsa, resultado da castástrofe, não parece um dado insuperável. A história do cristianismo está marcada pela recorrente manifestação de tendências propensas a sustentar que a salvação possa encontrar o seu início já nesta terra; assim se explica o surgimento de movimentos messiânicos revolucionários. É a confirmação do fato de que o relato bíblico não é propriamente uma verdadeira 'tragédia pessimista' (...)" (Domenico Losurdo, Nietzsche, O Rebelde Aristocrático, Revan, p. 59).

2. Bem, não posso dizer que eu possua, do mito grego, o domínio que penso poder dizer possuir do relato bíblico. Ainda assim, não ousaria afirmar que o mito de Prometeu - primeiro, possa ser lido "universalisticamente", como se fora um mito da espécie, um mito universal, uma metafísica da essência humana, nem, segundo, que resulte necessário afirmar dele que a condição de Prometeu seja inexorável. A dinâmica dos mitos é tal que, enquanto ele for um mito, pode ser transformado, desde dentro. Prometeu pode, a qualquer momento, arrebentar as correntes - em tese - e, também em tese, domesticar o corvo que lhe bica o fígado... Mas deixemos isso de lado.

3. Segundo Losurdo, Nietzsche reconheceria a ausência da condição de "tragédia pessimista" em Gn 2-3. E Nietzsche está certo. Mas isso nada tem a ver com uma condição espiritual ou cultural de um povo - nesse caso, o judeu. O fato de que o relato da "queda" de Adão e Eva não é inexoravelmente fatalista tem a ver com questões muito materiais e políticas.

4. Arrisco dizer: o relato foi produzido por sacerdotes judeus, por volta do século V, nos moldes - conscientemente?, intertextualmente? - da metodologia política de A República. Trata-se de construir uma narrativa que aprisione a população a ela, e exija da população comportamentos e ações programáticas. Trata-se de afirmar que cada homem e mulher vivem sob a maldição divina, e que, nos termos da maldição, estão apartados da presença de Deus. Mas não se trata de dizer que essa é uma condição inegociável, porque ela apenas estabelece o cenário dentro do qual a população judaica deve se conceber, cenário esse que tem por objetivo criar dependência sacerdotal na população.

5. Ora, mas a população judaica não pode conceber-se indefinidamente longe da presenaça de Yahweh. É dele que tudo vem! De modo que, o primeiro passo é essa população aceitar sua condição de afastada, apartada, amaldiçoada, mas o segundo é pogramaticamente ainda mais importante: aceitar que os sacerdotes do Templo de Jerusalém podem promover sempre renovadamente a aproximação entre esse povo pecador e o Deus aborrecido, aproximação essa mediada pela liturguia sacrificial. Cada judeu, homem ou mulher, se quiser uma aproximação mínima que seja com o divino, deve curvar-se diante da mediação sacerdotal.

6. Ora, se o mito afirmasse que o afastamento era absolutamente irremediável, primeiro, esses seriam os mais incompetentes gestores do sagrado de toda a história, porque, segundo, compreendendo que o leite estava terminantemente derramado, a população trataria de se aliar a outras narrativas mitológicas, para sua segurança espiritual, política, social, econômica, histórica. A tragédia do relato deve ser forte, mas não absolutamente destrutiva, muito menos irremediável. O povo judeu, destinatário do relato, deve sentir-se pecador, saber que Deus o condena e o tem por maldito, mas deve, ainda assim, querer as bênçãos desse Deus. A dose é muito bem sopesada. O relato, muito bem urdido.

7. O "erro" - se bem que isso também deve ser programaticamente político - de Nietzsche é achar que o relato biblico faz filosofia e teologia. Faz nada. Faz política. É a isso que resume tudo quanto o Templo de Jerusalém publicou. Política. E política aristocrática, hierocrática, sacerdotal e elitista.

8. A ironia e a contra ironia dessa história é que um judaísmio-cristianismo incipientes - mas só quando eram iniciais! - usaram essa condição contornável da condição humana para interpretar Jesus como a saída definitiva, "o" Cordeiro especial, logo, a tornar desnecessário o rito sacerdotal, a amarra institucional, a promulgar a liberdade da relação entre o homem e Deus, mas isso até que o próprio cristianismo reinventasse-se como religião de sacerdotes, e fizesse a tudo e todos, novamente, dependentes de suas pantomimas hierocráticas. O Templo de Jerusalém paira sobre a Igreja de Cristo, para desgosto do homem de Nazaré, eu suponho... E, quando eu vejo comunidades evangélicas apelando para a liturgia do templo, minhas entranhas queimam com fogo de dor.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Robson Guerra disse...

Oi, Osvaldo

O interessante e contraditório, talvez, me corrija se estiver equivocado, é que Nietzsche era anti-sacerdotal, mas ao mesmo tempo aristocrata e elitista. Como ele não percebeu essa incoerência?

Ah... é que ele não queria é que os sacerdotes se metessem a fazer dele a besta de carga. A massa tudo bem, mas ele não.

Mas a incoerência não permanece? Ser anti-sacerdotal e ser aristocrata, enquanto ser sacerdote é ser aristicrata e elitista. Como Nietzsche.

Será que acertei?

Robson Guerra

Peroratio disse...

Meu caro Robson, ando a ler Losurdo, e as três primeiras partes tratam do "jovem" Nietzsche, o da época de A Origem da Tragédia. Não queira saber que desenho emerge das páginas de Losurdo - um elitistazinho, germânico, castacista, anti-judeu, "racista", anti-democrático, tudo quanto é de pior para minha admiração... Losurdo o reconstrói por meio de cartas, cadernos preparatórios para as obras publicadas e as próprias obras... Esse Nietzsche da juventude não pode ser, sob nenhuma hipótese, o que eu leio nos livros de sua maturidade... Seja como for, mal cheguei na página 100. E são 1.200... Mas não está sendo uma leitura "agradável", se me entende...

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