quarta-feira, 5 de setembro de 2012

(2012/668) Taoísmo


1. Há dois mil e quinhentos anos, mais ou menos, alguém - a tradição faz constar ter sido Lao-Tsé (um homem real?, uma lenda?) -, dito, ao mesmo tempo, filósofo e alquimista, na China de todos os milênios, esse mundo que ainda há de se abrir ao mundo, é tido como o responsável por uma profunda intuição.

2. Diz-se que isso se deu naquele período curioso, crítico, dito axial - o século V (pouco antes, pouco depois). Por esse período, surgem movimentos filosóficos e religiosos quase que ao mesmo tempo, numa vasta região que vai de Portugal à China (não sabemos muito sobre o que ocorria, então, nos outros continentes). Confucionismo e Taoísmo, Budismo, Zorostrismo, Judaísmo clássico, a aurora da "filosofia" grega. Um período "revolucionário".

3. O Taoísmo, pois, a planta histórica daquela intuição de "Lao-Tsé", não ocorreu isoladamente do resto das ocorrências - uma onda varreu aquela parte do mundo, enorme, a onda e a região varrida, e uma das emergências foi, então, o Tao...

4. A intuição fundamental que se teve foi formidável: a existência se deve ao equilíbrio agônico entre forças opostas. É do enfrentamento das forças que emerge a realidade. Não, não se trata de algo bom contra algo mau, mas de princípio/força antagônicos, que se enfrentam e de cujo enfrentamento emerge  a realidade...

5. Uma analogia: o turbilhão. Uma onda de força (a água, por exemplo) se depara com uma resistência (a pedra, por exemplo) - a água e a pedra se enfrentam. Se a água vence, cobre a pedra, e se vai... Se a pedra vence, retem a água e a represa... Mas, se há equilíbrio, surge, na forma de um ser sem nenhuma outra substância nova, não há nada novo nele, exceto (re)organização do velho, o turbilhão, o redemoinho, que se manterá ali enquanto o equilíbrio da luta entre a água, que quer ir e arrastar consigo a pedra, e a pedra, que quer ficar e reter consigo a água, permanecer...

6. A vida, pois, é a estabilidade frágil e provisória de um equilíbrio local na agonia de forças que se enfrentam...

7. A vida é yin e yang - yin e yang em eterno enfrentamento...


8. Não há antropoformismo aí. Ao contrário - a vida humana é "compreendida" por meio dessa abstração de princípio: também ela é o resultado, ainda hoje, do enfrentamento de forças, que, nesse nível de existência, se expressa por meio dos combates entre som e silêncio, luz e escuridão, frio e calor, vida e morte. Necessário, o enfrentamento não é um defeito a ser corrigido...

9. E, aqui, convém saltar para uma outra expressão conceitual da vida, próxima e tão distante, ao mesmo tempo, do Tao, para, assim, ilustrar a diferença colossal entre elas - ou, veremos, entre o Tao e nós, cristãos...

10. O Zoroastrismo, que emprestará muito de sua filosofia e teologia para os judeus que, por sua vez repassarão a nós, judeus de segundo exame, me parece uma antropomorfização e moralização do Tao. Não vou discutir aqui a questão de um possível empréstimo crítico entre Taoísmo e Zoroastrimo, sobre algum contato entre Pérsia e China. Vou apenas pôr os dois modelos conceituais lado a lado.

11. No Zoroastrismo, a existência se explica pela batalha entre os dois deuses - o bom e o mau. Todos os dias, Arimã e Ormuzd lutam. O que vence, rege o dia. Na manhã seguinte, lutam outra vez. Há, aí, um princípio moral - um é bom, o outro, mau. Daí, é fácil saltar para a interpretação de que a vida é ruim porque o mau vence, e que essa vitória do mau é um problema. Nesse caso, não se vai estranhar que se tenha, logo, imaginado um fim para o problema, um fim para o mau/mal - o Juízo Final. Um dia, diz a tradição zoroastriana, as hostes do bem vencerão definitivamente o mau/mal, e a vida será apenas delícia: daí saíram as esperanças de "céu" de judeus, cristãos e muçulmanos... 

12. Observe-se que, para o Taoísmo, não há "bom" ou "mau" em termos existenciais - há o conflito necessário - destruição/criação - entre forças contrárias, e a vida, fragilíssima, deriva necessariamente desse conflito. Se um dos lados "vence", a existência acaba. Não há lugar para Juízo Final aí...

13. Para a tradição moral-zoroastriana, há, porque a vida não se explica pelo conflito necessário entre forças contrárias, mas pelo conflito desnecessário e provisório: o Bem vencerá o Mal, e a vida, então, será feliz para sempre, como nos contos de fada...

14. Eu diria que o Taoísmo encara o frio do Universo, suas forças, seu sentido, e traz para dentro da esfera humana essa coragem fria de encarar a realidade. Uma dose cavalar de "princípio de realidade", se posso citar Freud nesse contexto.

15. A tradição Zoroastriana, ao contrário, projeta para o Universo a moral e a ética humanas, antropomorfiza o cosmo e estabelece o desejo mágico de que o Universo atenda ao anseio humano de paz - é uma dose cavalar de "princípio de prazer", como são todas as religiões que dessa tradição derivaram.

16. Quando Feuerbach e Marx concordaram que a religião virou o mundo de ponta-cabeça, inverteu tudo, e transportou a humanidade inteira para um mundo de faz-de-conta, era dessa tradição que estavam falando.

17. O Taoísmo, nesse sentido, é duro demais, frio demais, inegociável demais. Não é de se estranhar que, na sua versão popular, tenha se transformado em práticas de magia simpática, transformando o que era frio e impessoal em algo maleável e doméstico. Não é qualquer um que consegue olhar pela janela em dias frios...





OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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