domingo, 25 de novembro de 2012

(2012/813) Sobre "Maria" - Theotokos e as imagens cristãs


1. Uma aluna de Teologia, de uma turma querida, pede-me uma "resposta" - sim, foi uma encomenda, que engraçado! - a uma imagem do facebook, condenando as imagens de Maria, pelo fato de não estarem na Bíblia e, pior, de textos bíblicos proibirem imagens.

2. Não é uma tarefa nem fácil nem rápida, mas tentarei, em poucos parágrafos, fazer um quadro geral da presença de Maria e de imagens, e também imagens de Maria, no Cristianismo.

3. Bem, antes é preciso saber que os israelitas e os judeus tinham imagens. Durante toda a sua história, até o século V a.C. tinham imagens - e não de santos, mas de deuses, porque eram politeístas. Há uma corrente acadêmica que ainda postula a hipótese de um braço pré-monoteísta, profético, desde o século IX a.C. (não apostaria nisso), mas, seja como for, na prática, Israel e Judá eram politeístas icônicos - além de adorarem vários deuses, adoravam-nos por meio de imagens.

4. Na virada do século VI para o V, depois que os sacerdotes que retornaram da Babilônia assumiram o poder, tudo mudou. E mudou tanto, que quase nada da religião judaica depois disso foi da mesma forma que fora antes. Antes, os judeus eram politeístas; depois, monolátricos (henoteístas); antes, adoravam imagens; depois, não; antes, tinham vários altares e templos; depois, só um (em Judá - no Egito, havia outro); antes, tinham profetas; depois, não; antes, tinham profetisas e sacerdotisas, depois, não; antes, Deus fazia bem e mal; depois, só bem. Mudou tudo.

5. Escreveu-se nesse período o Pentateuco. Todas as Leis, na prática, datam dessa época - século V em diante. Há coisas antigas, mas as antigas são justamente aquelas que conspiram contra essa pretensa vida monoteísta e anicônica: Nm 21, por exemplo, diz que Yahweh manda Moisés fazer uma imagem de serpente, e que o povo olhasse para ela, para se curar... Essa imagem ficou por anos no Templo, e os judeus ofereciam incenso a ela. Minha dissertação de mestrado foi sobre Nehushtan, a serpente de bronze - e eu já devia ter publicado.

6. Bem, até o Novo Testamento, nada mudou significativamente. E acontece Jesus. Surge, de dentro do judaísmo, e com suas características, a Igreja. Se ela tivesse permanecido judaica, nada teria mudado. Mas ela abriu as portas para os gregos, depois, para todos. Começa uma longa fase de negociações.

7. A Igreja de Coríntio, por exemplo - como era uma igreja situada em cidade portuária, gente de todos os lugares transitavam por ali. Foi justamente ali que uma prática não-judaica ingressou na Igreja - a glossolalia, a "fala em língua estranha". Foi um fenômeno não-israelita que a Igreja adotou. Paulo tolerou o fenômeno e tentou dar um tratamento organizado a ele - que houvesse intérprete.

8. A Igreja desenvolveu-se, assim, negociando. O Natal, por exemplo, em 25 de Dezembro, é a aplicação à data da Festa ao Deus Sol. Quando a Igreja se tornou imperial - de Roma, o Império - a festa do nascimento de Jesus passou a ser comemorada no dia da Festa ao Sol Invictus - Jesus não nasceu em 25 de dezembro - isso é apenas "sincretismo" formal.

9. Cada vez mais as pessoas ingressavam na igreja, e o uso de imagens passou a fazer parte das tradições, porque todos os povos que ingressavam no Cristianismo usavam culto de imagens - todas. Inclusive, quando Mohamed (Maomé) fará a sua revolução religiosa, todo seu povo - todo - usava imagens ainda. Era absolutamente normal e comum.

10. O que a igreja fez foi dar ao uso delas um tratamento diferenciado: não era "adoração", mas veneração - os santos que eles representavam, sempre relacionados a supostos cristãos mortos, não eram adorados, mas venerados. Depois da Reforma, a Contra-Reforma católica ratificou a veneração das imagens, contra Lutero, e isso então se pratica desde os primeiros séculos do Cristianismo.

11. No caso de Maria, a Igreja cristã operou de forma semelhante. Toda a bacia do Mediterrâneo - toda - era marcada pelo culto às deusas. No norte da África, Ísis; na Europa e na Ásia Menor, Minerva/Diana no Oriente Próximo, Ishtar. O Cristianismo não tinha deusas. A pressão era enorme.

12. Pois bem, em Nicéia e nos dois Concílios posteriores, Jesus, que nascera de Maria, foi considerado Deus. Ora, o raciocínio que se fez, sob a pressão gigantesca das populações, que apelavam para uma deusa, era: se Maria pariu Jesus como homem, então ela é humana, mas, se Jesus era Deus, então Maria pariu um Deus, pariu Deus, logo, ela é Mãe de Deus.

13. Não foi de um dia para o outro, mas em 431, no Concílio de Éfeso, Maria foi declarada pela Igreja como Theotokos, Mãe de Deus.

14. Preste-se atenção num detalhe: não foi a Igreja católica. A Igreja católica só passou a existir no século XVI, como reação a Lutero. Até o século XVI, só se pode falar da Igreja cristã. No século XVI, Lutero inventa moda de fazer a Reforma e separa-se da Igreja, alegando ser ele representante legítimo da "verdade" do NT. A Igreja, todavia, diante da insistência dos reformadores, convoca o Concílio de Trento e ratifica suas posições históricas. E esse braço histórico do Cristianismo se ratifica como Igreja Católica Apostólica Romana.

15. Assim, a Igreja cristã usa imagens e venera Maria há 1.600 anos. Há 500, uma parcela, os protestantes e seus herdeiros, os evangélicos, deixou de usar imagens e de venerar Maria.

16. Eu entendo que crentes "zelosos" se sintam pressionados à aplicação direta de textos antigos, do AT. De fato, a Lei, a Torá, diz que não se pode usar imagens. Também manda matar o filho desobediente. Eu entenderia alguém que, se dizendo fiel observador da Lei, se recusasse a usar imagens ou considerasse que quem as usa esteja errado, mas essa pessoa deveria cumprir, então, toda a Lei - inclusive a de matar o filho desobediente. 

17. A prática de usar a Bíblia como "prova" de coisas certas ou erradas é constrangedora, porque a mesma pessoa que usa a Bíblia contra os outros, não a usa contra si. Assim, trata-se apenas de compreender a História da Igreja. Se você é católico e gosta da veneração dos santos e do uso das imagens, fique com sua consciência tranquila. Se você é evangélico e concorda com Lutero, que se não deve usá-las, não as use, e fique com sua consciência tranquila. Mas deixe de lado essa mania de usar a Bíblia contra os outros... Porque a mesma Bíblia que você usa contra os outros, se volta contra você com a força da acusação de uma série de ordens que ela contém e que, com razão, você não cumpre. Mas, se você se dá o direito de não cumprir tudo o que a Bíblia diz, por que acha que tem o direito de exigir de outros cumprirem o que você acha correto?

18. O homem não foi feito para a Bíblia.

19. É a Bíblia que foi feita para o homem.

20. Ame as pessoas e terá cumprido a Lei.

21. O resto é pecado - até em nome de Deus.





OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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